3. O HOMEM
No relato bíblico da Criação registram-se as operações da Palavra de Deus enquanto criava. O "Disse Deus" evidencia o impulso inicial criador e a expressão "E Deus viu que era bom" caracteriza cada novo estágio completo, criado. No segundo dia tal expressão não aparece, eis que aquela operação só será completada no princípio do terceiro dia, ocasião em que se completará o mecanismo das águas e a delimitação com a terra seca, circunscrevendo-a.
Depreende-se da própria narrativa que tudo aquilo que Deus faz é perfeito, principalmente por ser de sua própria natureza e essência fazer o que faz perfeito. Descabe, portanto, a expressão "viu que era bom" sistematicamente repetida à perfeição da obra que Deus cria, ainda mais quando ela não aparece quando da criação do Homem, sua Obra-Prima:
"Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra" (Gn 1,26).
Aí está: Deus cria o Homem "à sua imagem e semelhança" e como tal tendo poder sobre toda a Criação:
"Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher os criou. Deus os abençoou e lhes disse: ‘Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra’. Deus disse: ‘Eu vos dou todas as ervas que dêem semente, que estão sobre toda a superfície da terra, e todas as árvores que dão frutos que dêem semente: isso será vosso alimento. A todas as feras, a todas as aves do céu, a tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou como alimento toda a verdura das plantas’, e assim se fez. Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom. Houve uma tarde e um manhã: sexto dia" (Gn 1,27-31).
Num só lance o narrador finaliza o último dia de Criação, o sexto dia. Nele criou Deus "os animais domésticos, répteis e feras segundo a sua espécie" e "Deus viu que era bom". Porém, após criar o Homem não diz o mesmo, "não viu que era bom"; mas, após cuidar da alimentação do que foi criado nesse último dia, "Deus viu tudo o que tinha feito: e tudo era muito bom". Só se pode concluir daí que Deus verificava se tudo "era bom" para o Homem, para quem Deus tudo criava. Um comparação facilitará a compreensão: é tal como sucede a um profissional, ao selecionar material e ferramentas para fazer uma mesa de madeira. Ao selecioná-los, um a um, vai dizendo de si para si mesmo ser bom o que separa, bom para a finalidade que busca, - a construção da mesa de madeira: separa o martelo e ao separá-lo "vê que isso era bom"; separa os pregos e ao fazê-lo "vê que eram bons"; separa a madeira para os pés e "vê que era boa"; separa as tábuas do tampo e da mesma forma "vê que eram boas"; tudo o que separou era bom para a mesa que queria construir; e, ao concluí-la mira toda a mesa pronta e "vê que ficou muito boa". É essa a imagem que se irradia de toda a narração em análise.
A expressão "e Deus viu que era bom" (1,4.10.12.18.21.25 e 31) traduz que tudo foi criado para o homem, a ele amoldado e entregue servindo-lhe até mesmo de alimento, cumprindo-lhe seguir o planejamento em função ordenadora, sempre em vista da finalidade de tudo e de cada coisa criada. O Homem é um auxiliar de Deus, um consorte com função executiva, feito para conviver com Deus, sua Imagem, sucedendo-O e secundando-O. Veio de Deus, REFLETE DEUS, devendo com Ele conviver e compartilhar, qual seja, vivendo por, com e para Deus. Por ser Imagem de Deus pode conhecê-lO, bem como as Suas leis.
Visivelmente Deus trata o homem desde a sua criação com carinho todo especial, expresso pelo ato de amoldá-lo Ele mesmo com as Suas Própria Mãos, com arte e afeto especiais, como um oleiro molda amorosamente no barro o objeto que cria:
"Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente" (Gn 2,7).
O Homem recebe de Deus o "hálito de vida e torna-se um ser vivente", trazendo em si a vida advinda do íntimo de Deus: o Homem tem Vida Divina em sua natureza de barro, em sua matéria. O Homem é a Matéria Divinizada. Nasceu diretamente de Deus, é Imagem de Deus, "reflete Deus", tal como uma imagem reflete aquilo que representa, tal como o reflexo de um espelho. O Homem, neste estágio da Criação, se identifica a Deus pelo domínio sobre ela e reflete a Santidade de Deus por sua integridade pessoal, por isso a "semelhança" e a "imagem".
Para o hagiógrafo, sem Deus o Homem nada é. Não passa de um viajante que trafega sem direção, sem caminho certo, um navegante que navega sem rumo. Sem Deus o Homem não encontra o seu trajeto, não parte nem chega. Perde-se em sua realidade existencial, sem finalidade, desligado de si mesmo por não se encontrar em Deus, de onde veio, para os fins e desígnios que lhe foram traçados por Ele. Ocupa um lugar privilegiado no quadro existencial da Criação e sem Deus fica deslocado gravitacionalmente, não girando em torno do eixo certo. Só em Deus pode se encontrar e se orientar, por ter vindo diretamente dEle. Também, ao narrador não ficou encoberto que na natureza criada existem leis ordenadoras das coisas e dos seres criados. Porém, necessitam elas da ação inteligente e catalisadora do Homem para melhor se ordenarem ao seu fim específico e desdobrarem melhor as suas possibilidades ou potencialidades naturais. A Obra da Criação traz em si mesma o seu próprio ordenamento com a fixação de leis próprias, eficazes, imanentes. Mas, centralizam-se no Homem, cujo desenvolvimento supõe a aptidão de ocupar o seu lugar no quadro vivo. É que tudo tem uma função peculiar, obedece determinações específicas e satisfaz até mesmo um conjunto sistemático e dinâmico. Tudo é segundo a finalidade material e orgânica, total e parcial, de toda a construção impressa, ordenada e governada por Deus. O Homem iria conduzir tudo a uma eficácia ideal, mediando entre as coisas, as criaturas, e Deus. O Homem que é matéria e ao mesmo tempo sopro de Deus seria o encontro de ambos. A expressão divina da matéria, eis o Homem, "imagem e semelhança de Deus" e, também, "barro", "pó". O Homem é a divinização da matéria criada, a expressão máxima da Criação, sem o quê, a Criação para nada serviria, sem nenhuma finalidade. É no Homem que a própria natureza das coisas se encontra consigo mesma e se realiza em plenitude material.
Criação que é uma dádiva de Deus, um transbordar do amor em ato divino. Ato criador, dom que se irradia em matizes infindos; uma dinâmica que faz acontecer, desenvolver e ser a vida pululante e bela; uma realidade que se fundamenta na intimidade de Deus e explode no Homem a "submeter e dominar" (Gn 1,28) a terra e a todos os seres criados, a tudo ordenando conforme as leis que lhe são próprias. Leis que descobre como emulsão das próprias coisas e seres criados. É do Homem o universo todo, assim Deus o destinou. Não apenas isso. Estabeleceu também um modo particular de convívio, um relacionamento específico, especial, chamando-o a uma vida mais íntima e partilhada familiarmente.