2. A CRIAÇÃO
Para ele nada do que existe, existe sem Deus; no princípio, tudo foi criado por Deus e caminha inexoravelmente conforme os desígnios de Deus, sem mistérios e sem complexidades, com a simplicidade inspirada por uma fé profunda. Diz apenas e vigorosamente que tudo começou a partir do impulso propulsor e ordenador da Palavra de Deus, mostrando-O assim onipotente, destacado da Criação, não se confundindo com Ela:
"Deus disse: ‘Haja luz’ e houve luz" (Gn 1,3).
Deus começou a criar afastando as trevas e criando a luz, para poder ver a obra em andamento e aparecer como estava ela sendo feita, em virtude da sua concepção rudimentar e ainda antropomórfica. Quando amanhece, parece-nos à primeira vista que a "luz do sol" precede a "luz do dia", como se distinguissem. Sabemos que não, a "luz do dia" é a "luz do sol", mas ao narrador, que não o sabia, havia a distinção tal como se percebe a olhos nus, sem instrumentos, e sem o menor conhecimento científico. Não sabia ele, nem poderia saber, que a luz do sol leva aproximadamente oito minutos para atingir a terra, em virtude do que a ele pareciam coexistir ambas, distintas e separadas. Por isso, na sua concepção, Deus a cria antes de criar o sol, qual seja, melhor dizendo, independentemente da criação dele. Criou "a luz" erradicando "as trevas" (1,2), facilitando assim a explosão da vida e do calor desenvolvida pelo "Espírito de Deus" (1,2). Daí então, a Criação se desdobra vertiginosamente, em seqüência culturalmente lógica para o narrador e em ordem sistemática delimitada em espaços uniformes de tempo, "em dias", conforme Deus pronunciava "Sua Palavra" ("...e Deus disse...", "...e Deus chamou"...):
"Deus chamou à luz ‘dia’ e às trevas ‘noite’. Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia" (Gn 1,5).
O mundo de então era concebido como um grande volume cheio de água, onde tudo já se encontrava confusamente disposto, que Deus vai formando e ordenando, tal como se fora um "feto numa placenta":
"Deus disse: ‘Haja um firmamento no meio das águas e assim se fez. Deus fez o firmamento, que separou as águas que estão sob o firmamento das águas que estão acima do firmamento, e Deus chamou ao firmamento ‘céu’. Houve uma tarde e uma manhã: segundo dia" (Gn 1,6-8).
Desconhecendo as leis físicas da evaporação da água, da formação das chuvas, e vendo-as cair, supunha que tanto havia águas no céu como nos mares, tal como se "vê" a olho nu, único instrumento disponível:
"Deus disse: ‘Que as águas que estão sob o céu se reunam numa só massa e que apareça o continente’, e assim se fez. Deus chamou ao continente ‘terra’ e à massa das águas ‘mares’, e Deus viu que isso era bom" (Gn 1,9-10).
Delimitou Deus a terra e desse modo separou-a dos mares. Estavam assim preparados os ambientes para a criação, geração e propagação dos vegetais, ervas e frutos, com o que se daria a erradicação da aridez da terra virgem:
"Deus disse: ‘Que a terra verdeje de verdura: ervas que dêem semente e árvores frutíferas que dêem sobre a terra, segundo a sua espécie, frutos contendo a sua semente’, e assim se fez. A terra produziu verdura: ervas que dão semente segundo a sua espécie, árvores que dão, segundo sua espécie, frutos contendo sua semente, e Deus viu que isso era bom. Houve uma tarde e uma manhã: terceiro dia" (Gn 1,11-13).
A vegetação, as ervas e as árvores que cobrem a superfície da terra não são imanentismos dela, mas gerados dela e nela pela Palavra de Deus, fonte de tudo o que existe, nada tendo vindo à existência sem que Ele chamasse:
"Deus disse: ‘Que haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a noite; que eles sirvam de sinais, tanto para as festas quanto para os dias e anos; que sejam luzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra’, e assim se fez. Deus fez os dois luzeiros maiores: o grande luzeiro para governar o dia e o pequeno luzeiro para governar a noite, e as estrelas. Deus os colocou no firmamento do céu para iluminar a terra, para governarem o dia e a noite, para separarem a luz e as trevas, e Deus viu que isso era bom. Houve uma tarde e uma manhã: quarto dia" (Gn 1,14-19).
Aquela luz já criada é depositada em receptáculos apropriados a sua distribuição durante a noite e durante o dia. Não são os luzeiros seres absolutos a ponto de se tornarem até mesmo em objetos de adoração por outros povos, eis que são criaturas advindas da Criação de Deus. Receberam de Deus a missão de comando e direção da luz, principalmente para as funções fundamentais da vida, indispensáveis à existência:
"Deus disse: ‘Fervilhem as águas um fervilhar de seres vivos e que as aves voem acima da terra, diante do firmamento do céu’, e assim se fez. Deus criou as grandes serpentes do mar e todos os seres vivos que rastejam e que fervilham nas águas segundo sua espécie, e Deus viu que isso era bom" (Gn 1,20-21).
Não bastava criar os seres vivos. Era preciso dotá-los de aptidão para a propagação e perpetuação da espécie. Deus então os fecunda, tornando-os férteis, capazes de se reproduzirem. É a bênção:
"Deus os abençoou e disse: ‘Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a água dos mares, e que as aves se multipliquem sobre a terra’. Houve uma tarde e uma manhã: quinto dia" (Gn 1,22-23).
Quando Deus abençoa, fecunda, e é de Deus que os seres recebem a vida e a fecundidade, não da natureza ou do mundo: as vegetações, as ervas e as árvores frutíferas tiveram por fonte criadora o próprio Deus. Ele lhes injeta a faculdade de viver e procriar como aptidão imanente a cada uma e a toda espécie viva, estendendo a bênção à própria terra e ao demais seres vivos:
"Deus disse: ‘Que a terra produza seres vivos segundo a sua espécie: animais domésticos, répteis e feras segundo sua espécie’, e assim se fez. Deus fez as feras segundo sua espécie, os animais domésticos segundo sua espécie e todos os répteis do solo segundo sua espécie, e Deus viu que isso era bom" (Gn 1,24-25).
E, a Criação prossegue inexorável, aperfeiçoando-se sempre mais e mais, em cada novo estádio ou etapa, em cada dia, três obras por dia, caminhando em direção a sua obra prima: a Criação do Homem, o ápice dela, com o que será ultimada e coroada. É de se notar que vários indícios evidenciam a forma poética dessa narração, quais sejam, dentre eles, a repetição sistemática de várias expressões, tais como "Deus disse", "Deus viu que era bom", "Houve tarde e manhã: ...dia", os números com sua significação peculiar na criação em seis dias, nas três obras por dia, no sétimo dia, e a forma ritmada de todo o contexto. Não houve testemunhas nem a escrita havia sido inventada ainda. Daí compreender-se que essa narração, para se manter viva na memória, era assim composta em versos, em virtude de ser declamada sistematicamente, método ainda usado no Oriente para a retenção e divulgação de acontecimentos importantes. Todo o Velho Testamento está repleta de outras poesias, como forma de celebração de fatos destacados na História da Salvação (Gn 49; Ex 15; Nm 23; 24; Dt 32; 33; Jz 5; 1 Sm 2,1-10; Os Salmos; etc.); e, no Novo Testamento destacam-se dentre muitos trechos dos rituais cristãos dos primórdios, o Magnificat de Maria (Lc 1,46-55), o Benedictus (Lc 1,67-79) etc..
Em toda a narração transparece a onipotência e onisciência de Deus, nada criando ao acaso, mas inteligentemente e obedecendo a uma ordem determinada e coerentemente disposta com vistas a um fim deliberado: A Criação do Homem